quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O que veneras, te matará – Podcast #73

O que veneras, te matará – Podcast #73

Podcast inspirado no discurso que o escritor David Foster Wallace proferiu em 2005 para os formando da Universidade do Kenyon e que ficou conhecido na internet com o nome de Isto é Água. O texto traz a ideia da identificação como fonte do sofrimento humano.

 

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Pense na lagosta e nos outros

 

 

 

Isto é Água de David Foster Wallace

Estes dois jovens peixes estão nadando por aí, e por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção contrária, que acena para eles e diz “Bom dia, meninos, como está a água?” E os dois jovens peixes continuam nadando por um tempo, até que eventualmente um deles olha para o outro e fala: “O que diabos é água?”

Esse é um requerimento padrão dos discursos de colação de grau norte-americanos, o emprego de pequenas histórias meio enigmáticas. O conto acaba sendo um dos melhores, menos encheção de linguiça do gênero, mas se você está preocupado que eu planejo me apresentar aqui como o velho peixe sábio explicando o que é água para vocês jovens peixes, por favor, não fique. Eu não sou o velho peixe sábio. O objetivo da história dos peixes é que as mais óbvias e importantes realidades são muitas vezes as mais difíceis de serem vistas e discutidas. Exposto como uma sentença em inglês, é claro que isso é somente uma  platitude banal, mas o fato é que nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, platitudes banais podem ter uma importância de vida ou morte, ou é isso que eu desejo sugerir nessa manhã linda e seca.

É claro que o principal requerimento de discursos como esse é que eu devo falar sobre o significado da sua educação em artes liberais, devo tentar explicar por que o diploma que vocês estão prestes a receber tem um valor humano real ao invés de somente retorno material. Então vamos falar sobre o cliché mais difundido nos discursos de colação de grau, que diz que uma educação em artes liberais não se trata apenas de te encher de conhecimento mas sim serve para te “ensinar a pensar”. Se você é como eu era quando estudante, você nunca gostou de escutar isso, e você tende a se sentir um pouco insultado pela afirmação de que você precisou que alguém te ensinasse a pensar, já que o fato de você ter entrado numa faculdade tão boa como essa parece uma prova de que você já sabe como pensar. Mas eu vou mostrar para você que o cliché das artes liberais acaba não sendo ofensivo, porque a parte significante da educação em pensar que nós devemos receber num lugar como esse, não diz respeito à capacidade de pensar, mas sim à escolha sobre o que pensar. Se seu total livre arbítrio sobre o que pensar parece muito óbvio para perder tempo discutindo, peço que pense sobre peixes e água, e que deixe de lado por apenas alguns minutos seu ceticismo sobre o valor do totalmente óbvio.

Aqui vai uma outra historinha didática. Lá estão dois caras sentados num bar numa parte remota do Alaska. Um dos caras é religioso, e o outro ateísta, e os dois estão discutindo a existencia de Deus com aquela intensidade especial que aparece mais ou menos depois da quarta cerveja. E o ateu diz: “Olha, não é como se eu não tivesse razões para não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experiência com essas coisas Deus e rezar. Mês passado mesmo eu saí do acampamento naquela terrível nevasca, e eu estava totalmente perdido e eu não conseguia ver nada, e estava 10° abaixo de zero, e então eu tentei: eu me ajoelhei na neve e gritei ‘Oh, Deus, se existe um Deus, eu estou perdido nessa nevasca, e eu vou morrer se você não me ajudar.” E agora, no bar, o religioso olha para o ateu, confuso.  “Bem, então você deve acreditar agora,” ele diz, “afinal de contas, você está aqui, vivo.” O ateu apenas vira os olhos. “Não, cara, tudo que aconteceu foi que uns Eskimos estavam passando e me mostraram o caminho de volta para o acampamento.”

É facil passar essa história por um tipo de análise padrão das artes liberais: a mesma experiência pode significar duas coisas totalmente diferentes para duas pessoas diferentes, dadas as duas diferentes crenças e duas diferentes maneiras de construir significados a partir de experiências destas pessoas. Porque nós valorizamos a tolerância e a diversidade de crença, em nenhum momento da nossa análise das artes liberais nós queremos alegar que a interpretação de um cara é verdadeira e a do outro é falsa ou ruim. O que é não tem problema, exceto que nós também acabamos nunca falando de onde esses padrões e crenças individuais vem. O que significa: de onde elas vem de dentro dos dois caras. Como se a mais básica das orientações de uma pessoa em relação ao mundo, e o significado da experiência dela foram de alguma maneira embutidas, como a altura ou o número dos sapatos; ou automaticamente absorvida da cultura, como a linguagem. Como se a maneira que construímos significado não fosse resultado de uma escolha pessoal, intencional. Além do mais, tem todo o problema da arrogância. O não-religioso está tão certo em dispensar a possibilidade que os Eskimos tinham algo a ver com sua prece por ajuda. Verdade, há um monte de pessoas religiosas que parecem arrogantes e certas sobres suas interpretações, também. Eles provavelmente são ainda mais repulsivos que os ateístas, ao menos para a maioria de nós. Mas o problema dos dogmatistas religiosos é exatamente o mesmo do incrédulo da história: certeza cega. Uma mentalidade fechada que acaba num aprisionamento tão total que o prisioneiro nem sabe que está trancafiado.

A questão aqui é o que eu acho que essa parte de me ensinar como pensar realmente significa: ser um pouco menos arrogante. Ter uma consciência crítica sobre mim mesmo e sobre minhas certezas. Porque uma imensa porcentagem das coisas que eu costumo automaticamente ter certeza está, como acontece, totalmente errada e enganada. Eu aprendi isso da maneira difícil, assim como eu prevejo que vocês também.

Eis um exemplo do quão absolutamente errado é uma coisa que eu tenho a tendência de estar automaticamente certo sobre: tudo em minha experiência imediata apóia minha crença profunda que eu sou o centro absoluto do universo; a mais real, intensa e importante pessoa na existência. Nós raramente pensamos sobre esse egoísmo meio natural e básico, porque ele é tão repulsivo socialmente, mas é praticamente o mesmo para todos nós. É a nossa configuração padrão, impressa em nossos circuitos no nascimento. Pense nisso: não há nenhuma experiência que você teve em que você não fosse o centro absoluto. O mundo como você o conhece está logo ali na sua frente, ou atrás de você, à sua esquerda ou direita, na sua TV, ou no seu monitor, e assim por diante. Os pensamentos e sentimentos de outras pessoas devem ser comunicados a você de alguma maneira, mas os seus são tão imediatos, urgentes, reais.

Por favor, não se preocupe em pensar que eu estou pronto para te dar um sermão sobre compaixão ou altruísmo ou as chamadas “virtudes”. Não se trata de virtude. É uma questão da minha escolha em fazer o esforço para de alguma maneira alterar ou me livrar da minha configuração natural, impressa em meus circuitos, que é ser profunda e literalmente egoísta, e ver e interpretar tudo pelas lentes do meu ser. Pessoas que podem ajustar sua configuração natural desta maneira são muitas vezes descritas como “bem ajustadas”, o que sugiro para vocês, não é um termo acidental.

Dado o ambiente de triunfo acadêmico aqui, uma pergunta óbvia é o quanto deste esforço de ajustar nossa configuração natural envolve conhecimento ou intelecto real. Essa questão é capciosa. Provavelmente o maior perigo da educação acadêmica, ao menos no meu caso, é que ela reforça minha tendência de super-intelectualizar as coisas, de me perder em argumentos abstratos dentro da minha cabeça ao invés de simplesmente prestar atenção a o que está acontecendo bem na minha frente. Prestar atenção a o que está acontecendo dentro de mim.

Como vocês já devem saber, é extremamente difícil ficar alerta e atento, ao invés de ficar hipnotizado pelo monólogo constante dentro da sua cabeça (talvez isso esteja acontecendo agora). Vinte anos após minha própria formatura, eu gradualmente compreendi que o clichê das artes liberais sobre “ensinar você a pensar” é na verdade a abreviação de uma ideia muito mais profunda, mais séria: aprender a pensar na verdade significa aprender a exercer algum controle sobre como e o que você pensa. Significa estar consciente e atento o suficiente para escolher ao que você presta atenção e para escolhercomo você constrói significado a partir da experiência. Porque se você não consegue exercer esse tipo de decisão na vida adulta, você estará em apuros.

Lembre-se do velho clichê “a mente é um excelente servo, mas um mestre terrível”. Este, como tantos outros clichés, tão chato e sem graça na superfície, na verdade expressa uma grande e terrível verdade. Não é nenhuma coincidência que adultos que cometem suicídio com armas de fogo quase sempre atiram na própria cabeça. Eles atiram no mestre terrível. E a verdade é que a maioria desses suicidas já está morta muito antes de puxar o gatilho. E eu sugiro que é este o valor real, sem perda de tempo, que a sua educação de artes liberais supostamente oferece: como deixar de passar a sua confortável, próspera e respeitável vida adulta morto, inconsciente, escravo da própria cabeça e da sua configuração natural de ser unicamente, completamente e imperialmente sozinho, todos os dias.

Isto pode soar como uma hipérbole, ou nonsense abstrato. Vamos tornar isso palpável. O fato é que vocês graduandos não tem ainda nenhuma ideia do que “dia-a-dia” realmente significa. Acontece que existem partes, grandes partes da vida adulta americana que ninguém fala em discursos de colação de grau. Uma dessas partes envolve chatice, rotina e frustrações triviais. Os pais e outras pessoas mais velhas aqui saberão muito bem do que eu estou falando.

Para exemplificar, vamos dizer que é um dia adulto habitual, e você levanta pela manhã, vai para o seu trabalho desafiador, engomado, diplomado, e você trabalha duro por oito ou dez horas, e no fim do dia você está cansado e um tanto estressado, e tudo que você quer é ir pra casa e comer um bom jantar e talvez relaxar durante uma hora e então cair na cama cedo porque, é claro, você precisa acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí você lembra que não tem comida em casa. Você não teve tempo de fazer compras essa semana por causa do seu trabalho desafiador, e então agora depois do trabalho, você tem que entrar no seu carro e dirigir até o supermercado. É o fim de um dia útil, e o transito está apto a estar muito ruim. Então chegar à loja demora muito mais do que deveria, e quando você finalmente chega lá o supermercado está muito cheio, porque é claro que é aquela hora do dia em que todas as outras pessoas com empregos também tentam encaixar a tarefa de fazer mercado. E o mercado está iluminado, e infundido com música de elevador ou pop e com certeza é o último lugar que você quer estar mas você não consegue entrar e sair rápido, você tem que andar por todos os enormes, super-iluminados e confusos corredores da loja para conseguir as coisas que você quer e você tem que manobrar o bagulho do seu carrinho por todas aquelas outras pessoas cansadas e com pressa com carrinhos (etc, etc, etc, estou cortando algumas coisas porque essa é uma cerimônia longa) e eventualmente você pega todos os itens do seu jantar, só que agora não tem caixas abertos o suficiente, apesar de ser a correria do final do dia. Então a fila é incrivelmente longa, o que é estúpido e enfurecedor. Mas você não pode descontar sua raiva na frenética senhora trabalhando no caixa, que é escravizada num trabalho cujo o tédio e a falta de sentido diários ultrapassam a imaginação de qualquer um de nós aqui numa prestigiosa faculdade.

Mas de qualquer maneira, você finalmente chega na frente da fila, e paga pela sua comida, e te mandam “ter um bom dia” numa voz que é a voz total da morte. Então você pega suas horríveis e frágeis sacolas de plástico com suas compras que estão dentro do seu carrinho, com uma roda torta que puxa irritantemente para a esquerda, todo o caminho através do estacionamento abarrotado, irregular e sujo, e então você tem que dirigir todo o caminho de volta pra casa por um transito da hora do rush, devagar, demorado, cheio de SUVs, etc, etc.

Todo mundo aqui já fez isso, é claro. Mas não tem sido parte da rotina de verdade de vocês graduandos, dia após semana após mês após ano. Mas será. E muito outras rotinas fatigantes, maçantes e sem sentido além dessa também serão. Mas essa não é a questão. A questão é que porcarias triviais e frustrantes como essa são exatamente onde o trabalho de escolher irá entrar. Já que os congestionamentos e corredores entupidos e longas filas de caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar e a o que prestar atenção, eu irei ficar brabo e arrasado toda a vez que eu tiver de ir às compras. Porque minha configuração natural é a certeza que situações como essa se tratam somente de mim. Sobre a minha fome e o meucansaço e o meu desejo de apenas chegar em casa, e irá parecer por tudo que existe que todas as outras pessoas só estão no meu caminho. E quem são todas essas pessoas no meu caminho? E veja o quão repulsivas a maioria delas são, e o quão estúpidas e parecidas com vacas e inexpressivas e não-humanas elas parecem na fila do caixa, ou o quão inoportunas e rudes são as pessoas falando alto no celular no meio da fila. E veja o quão profundamente e pessoalmente injusto é isso.

Ou, é claro, se eu estiver numa versão mais socialmente consciente das artes liberais da minha configuração padrão, eu posso passar o tempo no trânsito do fim do dia com nojo de todas as enormes, estúpidas SUVs e Hummers e pick-ups V-12, queimando todo o conteúdo do seus tanques egoístas e esbanjadores de 40 galões de gasolina, e eu posso me estender no fato de que os adesivos patriotas ou religiosos sempre parecem estar nos maiores, mais repugnantemente egoístas dos carros, dirigidos pelos mais feios, mais sem consideração e mais agressivos dos motoristas. E eu posso pensar como os filhos dos nossos filhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro, e provavelmente por foder com o clima, e o quão mimados e estúpidos e egoístas e repugnantes todos nós somos, e como a sociedade de consumo moderna fede, e assim por diante. Você entendeu a ideia.

Se eu escolho pensar desta maneira na loja e na rua, tudo bem. Muitos de nós o fazemos. Exceto que pensar desta maneira tende a ser tão fácil e tão automático que não precisa ser uma escolha. É a minha configuração natural. É a maneira automática em que eu percebo as partes enfadonhas, frustrantes e cheias da vida adulta quando eu estou operando na crença automática e inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades e sentimentos imediatos são o que deveria determinar as prioridades do mundo.

Acontece que, é claro, existem maneiras totalmente diferentes de se pensar sobre esses tipos de situações. Nesse trânsito, de todos esses veículos parados ou andando em marcha lenta na minha frente, não é impossível que algumas pessoas nessas SUVs tenham estado em acidentes de carro horríveis no passado, e agora tem tanto medo de dirigir que seu terapeuta mandou eles fazerem de tudo, inclusive comprar uma enorme e pesada SUV para que eles se sintam seguros o suficiente para dirigir. Ou que o Hummer que cortou minha frente talvez esteja sendo guiado por um pai cujo filho pequeno está machucado ou doente no assento ao lado dele, e ele está tentando chegar ao hospital, e ele está com uma pressa bem maior e mais legítima que a minha: na verdade sou eu quem está no caminho dele.

Ou eu posso escolher me forçar a considerar a possibilidade que todas as outras pessoas na fila do caixa do supermercado estão tão entediadas e frustradas quanto eu, e que algumas destas pessoas tem vidas mais difíceis, tediosas e sofridas que a minha.

De novo, por favor não pense que eu estou dando recomendações morais, ou que eu estou dizendo que você deve pensar dessa maneira, ou que alguém espera que você automaticamente o faça. Poque é difícil. É preciso força de vontade e esforço, e se você é igual a mim, alguns dias você não conseguirá fazê-lo, ou pura e simplesmente não vai querer fazê-lo.

Mas na maioria dos dias, se você está consciente o suficiente para dar uma opção a você mesmo, você pode escolher olhar de maneira diferente para essa senhora gorda, inexpressiva e cheia de maquiagem que acabou de gritar com o filho na fila do caixa. Talvez ela não seja sempre assim. Talvez ela passou as últimas três noites em claro segurando a mão do marido que está morrendo de câncer nos ossos. Ou talvez essa mesma senhora é a atendente do DETRAN que recebe um salário mínimo e ontem mesmo ajudou sua esposa a resolver um terrível, enfurecedor e burocrático problema através de um simples ato de gentileza burocrática. É claro, nada disso é provável, mas também não é impossível. Apenas depende do que você quer considerar. Se você está automaticamente certo de que sabe o que é a realidade, e se você está operando dentro da sua configuração padrão, então você, assim como eu, provavelmente não vai considerar as possibilidades que não são inoportunas e deprimentes. Mas se você aprender a realmente prestar atenção, então você vai perceber que existem outras opções. Estará realmente em seu poder experimentar uma situação do tipo inferno do consumidor lotada, quente e lerda não somente de maneira significante, mas sagrada, queimando com a mesma força que criou as estrelas: amor, companheirismo, a identidade mística lá no fundo de todas as coisas.

Não que a parte mística seja necessariamente verdade. A única Verdade com V maíusculo é que você pode decidir como você vai tentar vê-lo. Isso é, eu sugiro, a liberdade de uma educação real, de aprender a ser “bem ajustado”. Você pode conscientemente decidir o que tem significado e o que não tem. Você pode decidir o que cultuar.

Pois aqui vai outra coisa que é estranha, porém verdadeira: nas trincheiras do dia-a-dia da vida adulta, na realidade não existe algo tal qual o ateísmo. Não existe algo tal qual a não-adoração. Todo mundo cultua. A única escolha que temos é o que cultuar. E a razão que talvez nos  força a escolher algum tipo de deus ou espiritualidade – seja JC ou Allah, seja o YHWH ou a Deusa Mãe Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto de princípios éticos invioláveis – é que todo o resto que você adorar vai te comer vivo. Se você cultua dinheiro e posses, se eles são o que te faz atingir o verdadeiro sentido da vida, então você nunca terá o suficiente, nunca sentirá que tem o suficiente. É a verdade. Cultue seu corpo e beleza e sensualidade e você sempre se sentirá feio. E quando o tempo e a idade começarem a aparecer, você morrerá um milhão de vezes antes deles finalmente sentirem pesar por você. Em algum nível, todos nós já sabemos disso. Já foi codificado como mitos, provérbios, clichés, ditados, parábolas; o esqueleto de todas as boas histórias. O truque é deixar a verdade na primeira fila da consciência diária.

Cultue poder, você vai acabar se sentindo fraco e com medo, e você sempre precisará de mais poder sobre os outros para anular seu próprio medo. Cultue seu intelecto, sendo visto como inteligente, você acabará se sentindo idiota, uma fraude, sempre à beira de ser descoberto. Mas a parte traiçoeira destas formas de adoração não é que elas sejam ruins ou pecaminosas, mas é que elas são inconscientes. Elas são configurações padrão.

Elas são o tipo de adoração em que você gradualmente cai, dia após dia, ficando cada vez mais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem nem mesmo se dar conta de que é isso que você está fazendo. E o chamado “mundo real” não irá te desencorajar de operar nas suas configurações padrão, porque o chamado “mundo real” de homens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa poça de medo e raiva e frustração e desejo e adoração de si proprio. Nossa própria cultura atual colheu essas forças de maneiras que renderam riquezas e conforto e liberdade pessoal. A liberdade para sermos os senhores dos nossos pequenos reinos do tamanho de um crânio, sozinhos no centro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem muitas vantagens. Mas é claro que existem muitos tipos diferentes de liberdade, e o tipo que é mais precioso não é muito comentado no grande mundo exterior de precisar e alcançar e exibir. O tipo de liberdade realmente importante envolve atenção e consciência e disciplina, e estar apto a se importar autenticamente com outras pessoas, e a se sacrificar por elas repetidamente numa miríade de maneiras insignificantes e sem glamour todos os dias.

Isso é liberdade de verdade. Isso é ser educado, e compreender como pensar. A alternativa é a falta de consciência, a configuração padrão, a “corrida de ratos”, a constante sensação de ter tido e ter perdido alguma coisa infinita.

Eu sei que isso não parece divertido e alegre ou grandiosamente inspirador da maneira que um discurso de colação deve ser. O que é, da maneira que eu vejo, é a Verdade com V maíusculo despida de todas as gentilezas retóricas. Você é, é claro, livre para interpretar isso da maneira que quiser. Mas, por favor, não dispense isso tal qual um sermão da Dra. Laura*. Nada disso aqui é sobre moralidade ou religião ou dogma ou grandes e elaboradas questões sobre vida após a morte. A Verdade com V maiúsculo se trata da vida antes da morte.

É sobre o valor de real de uma educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência; consciência do que é tão real e essencial, tão oculto à vista de todos nós, o tempo todo, que nós temos que ficar lembrando a nós mesmos, de novo e de novo:

“Isso é água. Isso é água.”

Pense na Lagosta – David Foster Wallace

O enorme, pungente e muitíssimo bem divulgado Festival da Lagosta do Maine ocorre a cada final de julho na região costeira central do estado, isto é, o lado ocidental da baía de Penobscot, tronco nervoso da indústria da lagosta do Maine. A chamada região costeira central vai de Owl’s Head e Thomaston, ao sul, até Belfast, ao norte. (Na verdade poderia se estender até Bucksport, mas nunca conseguimos passar de Belfast seguindo rumo ao norte pela Rota 1, cujo tráfego no verão é, como se pode imaginar, inimaginável.) As duas principais comunidades da região são Camden, com suas famílias ricas tradicionais, marina, restaurantes cinco estrelas e pousadas maravilhosas, e Rockland, um vilarejo de pescadores muito antigo que a cada verão abriga o festival no histórico Harbor Park, bem ao lado da água.

O turismo e as lagostas são os principais setores de atividade da região costeira central, dois ramos associados ao clima quente, e o Festival da Lagosta do Maine, mais que uma intersecção dessas indústrias, representa uma colisão proposital, alegre, lucrativa e barulhenta. O assunto escolhido para este artigo da revista é o 56o FLM, promovido de 30 de julho a 3 de agosto de 2003, neste ano com o tema oficial de “Faróis, Risadas e Lagostas”. O público pagante total superou as 80 mil pessoas, em parte graças a um anúncio veiculado nacionalmente na CNN em junho, no qual a editora sênior da revista Food &Wine saudava o FLM como uma das melhores festividades gastronômicas do mundo.

Pontos altos do festival em 2003: as apresentações de Lee Ann Womack e Orleans, o concurso de beleza anual da Deusa do Mar do Maine, o grande desfile do sábado, a Corrida Sobre Gaiolas de Lagosta em Memória a William G. Atwood no domingo, a Competição Anual de Culinária Amadora, os brinquedos e estandes do parque de diversões, as barraquinhas de comida e a Praça de Alimentação Principal da flm, onde perto de 12 mil quilos de lagostas do Maine fresquinhas são consumidos após serem preparados na “Maior Panela Para Lagostas do Mundo”, perto do acesso norte do festival. Também são oferecidos sanduíches de lagosta, folhados de lagosta, lagosta salteada, salada de lagosta Down East, sopa creme de lagosta, ravióli de lagosta e bolinhos fritos de lagosta. É possível obter lagosta à thermidor em um restaurante tradicional chamado Black Pearl, no cais noroeste do Harbor Park.

Um amplo estande de madeira de pinho patrocinado pelo Conselho de Fomento à Lagosta do Maine distribui panfletos gratuitos com receitas, dicas de consumo e curiosidades sobre lagostas. O vencedor da Competição de Culinária Amadora da sexta-feira preparou Potinhos de Lagosta com Açafrão, receita que agora se encontra disponível ao público para download em https://ift.tt/OIVMsJ. Há camisetas de lagostas, bonecos articuladosde lagostas, lagostas infláveis para piscinas e chapéus acopláveis de lagosta com enormes garras escarlates que chacoalham em molas. Este correspondente viu tudo isso, acompanhado por uma namorada e ambos os pais – um dos quais, a propósito, é nascido e criado no Maine, ainda que no interior da região mais ao norte, uma terra de batatas a um mundo de distância do turismo da região costeira central.

ara fins práticos, todo mundo sabe o que é uma lagosta. Como de costume, todavia, existe muito mais para saber do que a maioria de nós se importa em descobrir – é tudo uma questão de interesses pessoais. Em termos taxonômicos, uma lagosta é um crustáceo marinho da família homaridae, caracterizado por cinco pares de patas articuladas dos quais o primeiro termina em grandes garras semelhantes a pinças, utilizadas para subjugar presas. Como muitas outras espécies de carnívoros bentônicos, as lagostas são ao mesmo tempo caçadoras e saprófagas. Possuem antenas, olhos pedunculares e guelras nas patas. Há mais ou menos uma dúzia de tipos diferentes de lagostas ao redor do mundo, mas a espécie aqui relevante é a Homarus americanus, conhecida como lagosta do Maine ou lagosta-americana.A palavra inglesa lobster vem do inglês antigo loppestre, supostamente uma corruptela de locusta, a palavra latina para gafanhoto que também é a raiz de “lagosta”, combinada com o inglês antigo loppe, que significa aranha.

Além disso, um crustáceo é um artrópode aquático da classecrustacea, que inclui caranguejos, camarões, cracas, lagostas e lagostins-de-água-doce. Tudo isso está lá, na enciclopédia. E os artrópodes são membros do filo Arthropoda, que abrange insetos, aranhas, crustáceos e quilópodes/diplópodes, que possuem como principal traço comum, além da ausência de uma estrutura centralizada cerebroespinal, um exoesqueleto quitinoso composto por segmentos,ao qual se articulam pares de apêndices.

 questão é que lagostas são basicamente insetos marinhos gigantes. (Por sinal, o termo usado pelos nativos da região costeira central para falar de lagostas é “inseto”. Por exemplo: “Aparece lá em casa no sábado, vamos cozinhar uns insetos.”) Como a maioria dos artrópodes, as lagostas remontam ao perío-do jurássico; biologicamente são anteriores aos mamíferos que bem que poderiam ser de outro planeta. E – particularmente em seu estado natural marrom-esverdeado, brandindo as garras como se fossem armas e agitando as grossas antenas – não são bonitas de se ver.E é verdade que se trata de lixeiras do mar, comedoras de coisas mortas, embora também comam um pouco de moluscos vivos, certos tipos de peixes machucados e por vezes umas às outras. Cultura inútil: armadilhas para lagostas geralmente usam como isca arenques mortos.

Mas também são boas de comer. Ou pelo menos é o que achamos agora. Até certa altura do século XIX, todavia, a lagosta era literalmente um alimento de classe baixa, consumido apenas pelos pobres e encarcerados. Até mesmo no rude ambiente penal dos primórdios da história americana algumas das colônias tinham leis limitando o uso de lagostas na alimentação dos detentos a uma única vez por semana, porque isso era julgado cruel e incomum, semelhante a obrigar pessoas a comerem ratos. Uma das razões para esse baixo prestígio era a fartura de lagostas na Nova Inglaterra de então. “Abundância inacreditável” são as palavras com que uma fonte descreve a situação, inclusive com relatos de peregrinos de Plymouth capturando lagostas à vontade com as mãos nuas ou do antigo litoral de Boston coberto de lagostas após uma série de tempestades. Elas foram consideradas um incômodo fedorento e moídas para serem usadas como adubo. Também é preciso levar em conta que as lagostas pré-modernas eram cozidas mortas e em seguida postas em conserva, geralmente em sal ou embalagens herméticas primitivas. A indústria da lagosta no Maine teve início com uma dúzia dessas fábricas de conserva nos anos 1840, de onde as lagostas eram enviadas a lugares tão distantes quanto a Califórnia, e a demanda existia somente por serem baratas e possuírem um alto teor de proteína, basicamente um combustível mastigável.

Hoje em dia, é claro, a lagosta é chique, uma iguaria, poucos graus abaixo do caviar. Possui uma carne mais saborosa e substancial que a maioria dos peixes, com um gosto sutil se comparado ao gosto de mar dos mexilhões e dos mariscos. Na imaginação alimentícia populardos Estados Unidos, a lagosta se tornou o análogo marinho do filé, ao lado do qual é tantas vezes servida como Surf and Turf na parte mais cara dos cardápios de cadeias de restaurantes.

Aliás, um projeto óbvio do FLM e de seu patrocinador onipresente, o Conselho de Fomento à Lagosta do Maine, é combater a ideia de que a lagosta é uma comida luxuosa, cara ou prejudicial à saúde, adequada somente a paladares afetados ou como petisco ocasional para escapar da dieta. Palestrase panfletos enfatizam sem descanso que a carne de lagosta tem menos calorias, menos colesterol e menos gordura saturada que a carne de frango. E na Praça de Alimentação Principal é possível comprar um “quarto” (gíria da indústria para uma lagosta de 600 gramas), um copinho com 120 gramas de manteiga derretida, um saco de batatas fritas e um pãozinho com manteiga por 12 dólares, o que é apenas um tantinho mais caro que jantar no McDonald’s. É claro que o hábito corriqueiro de mergulhar carne de lagosta em manteiga derretida torpedeia todas essas alegres curiosidades saudáveis sobre gordura, o que nunca é mencionado pelo material promocional do Conselho, assim como os informativos da indústria da batata nunca mencionam o creme azedo e os cubinhos de bacon.

aiba que no Festival da Lagosta doMaine a democratização da lagosta vem acompanhada por toda a inconveniência maciça e concessão estética da verdadeira democracia. Confira, por exemplo, a supracitada Praça de Alimentação Principal, para a qual existe uma fila constante digna da Disneylândia, e que consiste em meio quilômetroquadrado de balcões de cafeteria protegidos por um toldo e fileiras de longas mesasinstitucionais onde amigos e desconhecidos sentam-se coladinhos, quebrando, mastigando e babando. É um lugar quente, onde o teto descaído aprisiona o vapor e os odores, sendo que estes últimos são fortes e apenas parcialmente relacionados a alimentos. É também um lugar barulhento, e uma porcentagem considerável do ruído total émastigatória.

A comida é servida em bandejas de isopor, os refrigerantes não têm gelo nem gás, o café é café de loja de conveniência em mais isopor e os talheres são de plástico (não é possível encontrar nenhum daqueles garfos especiais e compridos que servem para extrair a carne da cauda, ainda que alguns clientes espertostragam os seus de casa). O número de guardanapos fornecido também não chega nem perto do suficiente, levando-se em consideração que comer lagosta é uma lambuzeira, especialmente quando se está espremido em bancos ao lado de crianças de idades variadas e estágios vastamente diversos de coordenação motora – isso sem mencionar as pessoas que de algum jeito conseguiram contrabandear sua própria cerveja em enormes isopores que bloqueiam a passagem, ou aquelas que aparecem de repente com toalhas de plástico que espalham sobre porções consideráveis das mesas numa tentativa de reservá-las (as mesas) aos seus grupinhos. E assim por diante.

Isolado, qualquer um desses exemplos naturalmente não passa de um incômodo trivial, mas o fato é que o FLM se mostra cheio desses pequenos aborrecimentos irritantes – por exemplo, quando você descobre que precisa pagar 20 dólares a mais por uma cadeira dobrável se quiser se sentar ao assistir a alguma das grandes atrações do Palco Principal; ou a loucura desenfreada que se instala na Tenda Norte quando começa a distribuição dos copinhos minúsculos, que mais parecem dedais, com bocadinhos das receitas finalistas da Competição de Culinária; ou a aclamadíssima final do concurso de beleza Deusa do Mar do Maine, que se revela excruciantemente longa e consiste sobretudo em infinitos agradecimentos e homenagens a patrocinadores locais. Melhor nem falar sobre a terrível inadequação dos banheiros químicos ou sobre o fato de não haver lugar algum para se lavar as mãos antes ou depois de comer.

Na verdade o Festival da Lagosta do Maine é uma feira interiorana de nível médio com gancho culinário, e a esse respeito não difere muito dos festivais de caranguejos de Tidewater, dos festivais de milho do Meio-Oeste, dos festivais de chili do Texas etc.,e compartilha com esses acontecimentoso paradoxo central de todos os apinhados eventos comerciais populares: não é para todos. Nada contra a eufórica editora sênior da Food Wine, mas eu ficaria surpreso se descobrisse que ela realmente já esteve aqui no Harbor Park, entre multidões matando a tapa os mosquitos da zona do canal enquanto comem Twinkies fritose assistem ao professor Paddy-Whack aterrorizando as crianças sobre pernas de pau de 1,80 metro, vestido com um sobretudo de onde saltam em todas as direções lagostas de plástico dependuradas em molas.

Um parêntese: na verdade, muitas coisas podem ser ditas a respeito das diferenças entre a classe trabalhadora de Rockland e o sabor acentuadamente populista do festival versusa confortável e elitista Camden com sua paisagem caríssima, suas lojas tomadas inteiramente por suéteres de 200 dólares e fileiras de casas vitorianas transformadas em pousadas de luxo. E também a respeito dessas diferenças como os dois lados da grande moeda que é o turismo nos Estados Unidos. Confesso que nunca entendi por que a ideia de férias divertidas de tantas pessoas é calçar chinelos e óculos de sol e se arrastar por um tráfego enlouquecedor até locais turísticos quentes e lotados com o intuito de provar um “sabor local” que por definição é arruinado pela presença de turistas. Isso tudo pode ser uma questão de personalidade e gostos inatos: o fato de eu não gostar de locais turísticos significa que nunca vou compreender seu encanto, e assim provavelmente não sou a pessoa mais indicada para falar sobre isso (o suposto encanto). Do meu ponto de vista, é provável que ser turista faça mesmo algum bem para a alma, mesmo que apenas de vez em quando. Todavia, não que faça bem para a alma de algum modo revigorante ou alentador, mas de um jeito severo e obstinado de vamos-encarar-os-fatos-com-honestidade-e-tentar-encontrar-um-modo-de-lidar-com-eles. Minha experiência pessoal não é a de que viajar pelo país seja relaxante ou amplie os horizontes, ou de que mudanças radicais de lugar e contexto tenham um efeito salutar, mas sim de que o turismo intranacional é radicalmente constritivo e humilhante da pior forma – hostil à minha fantasia de ser um indivíduo genuí-no, de viver de algum modo fora e acima de todo o resto. Ser um turista massificado, para mim, é se tornar um puro americano contemporâneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir. É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade que se foi experimentar. É se impor sobre lugares que, em todas as formas não econômicas, seriam melhores e mais verdadeiros sem a sua presença. É confrontar, em filas e engarrafamentos, transação após transação, uma dimensão de si mesmo tão inescapável quanto dolorosa: na condição de turista você se torna economicamente significativo mas existencialmente detestável.

 lagosta, em essência, é um alimento de verão. Isso porque agora preferimos lagostas frescas, o que significa que elas precisam ter sido capturadas recentemente, o que por razões tanto táticas quanto econômicas ocorre em profundidades inferiores a 45 metros. Lagostas tendem a ficar mais famintas e ativas (isto é, mais fáceis de capturar) quando a temperatura da água fica entre 7 e 10 graus, como é típico do verão. No outono a maioria das lagostas do Maine migra para águas mais profundas, seja em busca de calor ou para evitar as ondas pesadas que golpeiam o litoral da Nova Inglaterra durante o inverno inteiro. Algumas se enterram no leito marinho. Talvez hibernem; ninguém sabe ao certo. É também no verão que as lagostas trocam de carapaça – mais especificamente, do início à metade de julho.

Artrópodes quitinosos crescem trocando de carapaça, mais ou menos da mesma forma que compramos roupas maiores à medida que envelhecemos e ganhamos peso. Como as lagostas podem viver mais de 100 anos, podem também ficar bem grandes, chegando a passar dos 9 quilos – ainda que nos dias de hoje sejam raras as lagostas da terceira idade, pois as águas da Nova Inglaterra estão cheias de armadilhas. Enfim, disso vem a diferença culinária entre lagostas de casca dura e de casca mole.Uma lagosta de casca mole é uma lagosta que acabou de trocar de carapaça. Ambas são oferecidas nos cardápios de verão dos restaurantes da região costeira central, nos quais as lagostas de casca mole são um pouco mais baratas mesmo sendo mais fáceis de destrinchar e donas de uma carne considerada mais suave.O motivo do desconto é que uma lagosta em fase de troca utiliza uma camada de água do mar como isolamento enquanto a nova carapaça endurece, e por causa disso quando se arrebenta uma lagosta de casca mole há um pouquinho menos de carnee um fragrante jorro d’água que se espalha sobre tudo, às vezes espirrando como um limão e atingindo um companheiro de mesa bem no olho. Se é inverno ou se você está comprando lagostas em algum lugar distante da Nova Inglaterra, por outro lado, dá quase para apostar que a lagosta vai ter a casca dura, que por motivos óbvios é mais transportável.

Como prato principal à la carte, a lagosta pode ser assada, grelhada, cozida ao vapor, refogada, salteada,feita em wok ou no micro-ondas.Mas o método mais comum é a fervura. Quem gosta de comer lagostas em casa provavelmente a prepara desta forma, pois ferver lagostas é muito fácil. É necessário um tacho grande com tampa, que é preenchido com água até mais ou menos a metade (a recomendação mais comum são 2 litros e meio de água por lagosta). O ideal é água do mar, ou adicione duas colheres de sopa de sal a cada litro de água da torneira. Também é interessante saber o peso de cada lagosta. Espera-se a água ferver, coloca-se uma lagosta de cada vez, cobre-se o tacho e aumenta-se o fogo até a água voltar a ferver.Então é preciso baixar o fogo e deixar o tacho em fogo brando – dez minutos para o primeiro meio quilo de lagosta, e acima disso três minutos para cada meio quilo. (Isso considerando-se que estão sendo usadas lagostas de casca dura, que, repito, se você não mora entre Boston e Halifax, são provavelmente as únicas que conseguiu encontrar. No caso de lagostas de casca mole é preciso subtrair três minutos do total.) As lagostas ficamvermelhas porque de algum modo essa fervura suprime todos os pigmentos na quitina, exceto um. Um teste simples para saber se as lagostas estão prontas é tentar arrancar uma das antenas – se ela se descolar da cabeça ao menor esforço, o bicho está pronto para comer.

Um detalhe tão óbvio que a maioria das receitas nem se preocupa em mencionar é que as lagostas precisam estar vivas ao serem colocadas no tacho. Isso faz parte do apelo contemporâneo da lagosta – é o alimento mais fresco que existe. Não acontece decomposição alguma entre a pescaria e a hora de comer. E além de não precisarem ser limpas, temperadas nem depenadas, é simples para os vendedores manter as lagostas vivas. Chegam vivas dentro das armadilhas, são colocadas em recipientes com água do mar e podem (desde que a água seja mantida aerada e as garras dos animais estejam amarradas ou presas para impedir que ataquem uns aos outros por causa do estresse do confinamento) sobreviver até o instante em que são fervidas. Um raciocínio similar embasa o que se chama de “debicar” frangos e galinhas poedeiras nas fazendas de confinamento. A máxima eficiência comercial exige que populações imensas de galináceos sejam confinadas em espaços desnaturadamente exíguos, condições sob as quais muitas aves enlouquecem e bicam umas às outras até a morte. Como observação de caráter puramente empírico, informo que a “debicagem” costuma ser um processo automatizado e que as galinhas não recebem anestésico nenhum. Não sei se os leitores conhecem a “debicagem” ou as práticas relacionadas, como a extração dos chifres do gado em fazendas industriais e o corte da cauda dos porcos em fazendas de confinamento de suínos para impedir vizinhos psicoticamente entediados de arrancá-las com os dentes e assim por diante.

uase todo mundo já esteve em supermercados ou restaurantes que contam com aquários de lagostas vivas, onde podemos escolher o jantar enquanto ele encara nosso dedo estendido. E uma parte importante do espetáculo no Festival da Lagosta do Maine é assistir às embarcações dos pescadores de lagostas atracando nos molhes da parte nordeste e descarregando o produto recém-pescado, que é então transferido manualmente ou com auxílio de carrinhos por cerca de 90 metros até os imensos tanques transparentes empilhados ao redor do panelão do festival – que, como mencionei, é divulgado como a Maior Panela para Lagostas do Mundo e pode cozinhar de uma só vez mais de 100 lagostas para a Tenda Principal.

Então aqui vai uma pergunta que se torna praticamente inevitável diante da Maior Panela para Lagostas do Mundo e pode vir à tona em cozinhas espalhadas por todos os Estados Unidos: é certo ferver viva uma criatura senciente para nosso mero prazer gustativo? Um conjunto de preocupações relacionadas: seria a perguntaanterior uma manifestação enfadonha de sentimentalismo ou raciocínio politicamente correto? Nesse contexto, qual seria o sentido de “certo”? Seria isso tudo apenas uma questão de escolha pessoal?

Como talvez você saiba, ou não, um grupo notório conhecido como People for the Ethical Treatment of Animals(Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais) acredita que a moralidade do ato de ferver lagostas não é apenas uma questão de consciência individual. Na verdade, uma das primeiríssimas coisas que escutamos sobre o FLM… bem, vamos definir a cena: estamos vindo de táxi do quase indescritivelmente estranho e rústico aeroporto do condado de Knox, na madrugada anterior à abertura do festival, dividindo o táxi com um consultor político endinheirado que passa metade do ano morando na ilha Vinalhaven, que fica na baía (seu destino é a balsa de Rockland).

O consultor e o motorista estão respondendo a sondagens jornalísticas informais sobre avisão real dos moradores da região sobre o FLM, se por exemplo consideram o festival apenas um evento para atrair turistas e lucrar bastante ou se é algo pelo qual os moradores do local esperam ansiosos, que genuinamente promove seu orgulho como cidadãos etc. O motorista (que passou dos 70 anos e parece fazer parte de um pelotão inteiro de aposentados contratado pela empresa de táxi para ajudar no burburinho do verão, usa um broche de lapela com a bandeira americana e dirige de um modo que pode somente ser descrito como muito cauteloso) nos garante que os moradores apoiam e apreciam o FLM, embora faça vários anos que ele mesmo não comparece ao evento e, parando para pensar, ninguém que ele ou a esposa conheçam. Todavia o consultor seminativo participou de alguns festivais recentes (tive a impressão de que fez isso por ordem da esposa), dos quais guardou como impressão mais vívida o fato de ser necessário “esperar na fila por um tempo interminável e lancinante até comprar as lagostas, e enquanto isso um monte de ex-malucos-beleza zanza para cima e para baixo distribuindo panfletos dizendo que as lagostas morrem sofrendo dores terríveis e que ninguém deveria comê-las”.

E calhou que os pós-hippies das reminiscências do consultor eram ativistas do Peta. Não havia ninguém do Peta à vista no FLM de 2003,[1] mas eles foram uma presença ostensiva em muitos dos festivais recentes. Desde a metade dos anos 90, pelo menos, artigos publicados em todo tipo de jornais, do Camden Herald aoNew York Times, descreveram o Peta incitando boicotes ao Festival da Lagosta do Maine, muitas vezes empregando porta-vozes famosos como Mary Tyler Moore em cartas abertas e anúncios declarando coisas como “Lagostas são extraordinariamente sensíveis” e “Para mim, comer uma lagosta está fora de questão.” Mais concreto é o depoimento oral de Dick, nosso floreado e deveras sociável contato na locadora de automóveis, segundo o qual o Peta esteve tão presente nos últimos anos que os ativistas e os nativos do festival chegaram a uma espécie de homeostase de tolerância precária, por exemplo: “Tivemos alguns incidentes uns anos atrás. Uma mulher tirou quase toda a roupa, se pintou inteira de lagosta e quase acabou presa. Mas na maior parte do tempo eles são deixados em paz. [Uma sequência rápida de risadinhas ambíguas, algo que acontece bastante com Dick.] Eles fazem a parte deles e nós fazemos a nossa.”

Essa interlocução inteira ocorre na Rota 1, em 30 de julho, durante um trajeto de 6 quilômetros e cinquenta minutos do aeroporto até a locadora para assinar os documentos de aluguel do carro. Depois de vários desdobramentos irreproduzíveis das anedotas sobre o Peta, Dick (cujo genro é pescador de lagostas por ofício e um dos fornecedores da Praça de Alimentação Principal) expõe o que ele e sua família consideram o fator atenuante crucial em toda essa questão sobre a moralidade de ferver lagostas vivas: “No cérebro das pessoas e dos animais existe uma parte que nos faz sentir dor, e os cérebros das lagostas não têm essa parte.”

Sem entrar no mérito de essa tese estar incorreta por uns onze motivos diferentes, a declaração de Dick se torna interessante por ser mais ou menos ecoada pelo pronunciamento oficial do FLM sobre lagostas e dor, parte integrante de um teste chamado “Teste seu QI de lagosta” encartado no programa do festival de 2003 por cortesia do Conselho de Fomento à Lagosta do Maine: O sistema nervoso da lagosta é muito simples, e na verdade é muito semelhante ao sistema nervoso do gafanhoto. É descentralizado, sem um cérebro. Não há um córtex cerebral, que nos humanos é a área do cérebro que proporciona a experiência da dor.

Embora soe mais sofisticado, boa parte do embasamento neurológico desta afirmação ainda é falsa ou imprecisa. O córtexcerebral humano é a parte do cérebro que lida com as faculdades superiores, como a razão, a autoconsciência metafísica, a linguagem etc. Sabemos que os receptores da dor fazem parte de um sistema muito mais antigo e primitivo de nociceptores e prostaglandinas administrados pelo tronco encefálico e o tálamo. Por exemplo, a experiência corriqueira de encostar a mão sem querer em um forno quente e retirá-la bruscamente antes mesmo de notar que há algo de errado se explica pelo fato de muitos dos processos através dos quais detectamos e evitamos os estímulos dolorosos não envolverem o córtex. No caso da mão e do forno, o cérebro é totalmente contornado; toda a ação neuroquímica importante acontece na espinha dorsal.

Por outro lado, é verdade que o córtex cerebral está envolvido no que se costuma chamar de sofrimento, aflição ou experiência emocional da dor – isto é, experimentar estímulos dolorosos como desagradáveis, muito desagradáveis, intoleráveis e assim por diante.

ntes de avançarmos, vamos reconhecer que as questões sobre se e como diferentes tipos de animais sentem dor, e de se e por que seria justificável lhes infligir dor para se alimentar deles, se mostram extremamente complexas e difíceis. E neuroanatomia comparada é apenas parte do problema. Como a dor é uma experiência mental totalmente subjetiva, não temos acesso direto à dor de ninguém ou de coisa alguma, somente à nossa; e até mesmo os princípios pelos quais podemos inferir que outros seres humanos experimentam a dor e têm um interesse legítimo em não sentir dor envolvem filosofia pura – metafísica, epistemologia, teoria dos valores, ética.

O fato de nem mesmo os mamíferos não humanos mais evoluídos serem capazes de usar linguagem para se comunicar conosco a respeito de sua experiência mental subjetiva é apenas a primeira camada da complicação adicional de tentar estender aos animais nossos raciocínios sobre dor e moralidade. E tudo fica cada vez mais abstrato e intrincado à medida que nos afastamos mais e mais dos ma-míferos superiores e passamos aos bovinos e suínos, aos cães e gatos e aos roedores, e então aos pássaros, aos peixes e por fim aos invertebrados, como as lagostas.

Todavia o mais importante aqui é que toda a questão da crueldade com os animais e da moralidade de comê-los não é apenas complexa, mas também desconfortável. Ou pelo menos é desconfortável para mim, e para praticamente todos os meus conhecidos que apreciam uma ampla gama de alimentos e ao mesmo tempo não querem se enxergar como cruéis ou insensíveis. Até onde percebo, minha principal maneira de lidar com esse conflito tem sido evitar pensar sobre esse assunto tão desagradável. Devo admitir que também me parece improvável que muitos leitores de queiram pensar sobre isso ou ser questionados a respeito da moralidade dos seus hábitos alimentares por uma revista mensal de gastronomia. Porém, como a pauta definida para este artigo é descrever como foi participar do FLM de 2003, e por causa disso passar vários dias em meio a uma grande massa de americanos comendo lagostas, e consequentemente ser mais ou menos impelido a pensar a fundo sobre lagostas e sobre a experiência de comprar e comer lagostas, calha que não existe uma maneira honesta de evitar certas questões morais.

Há vários motivos para isso. Para começar, não existe só o problema de que as lagostas são fervidas vivas, mas também o de que quem faz isso é você – ou pelo menos isso é feito especificamente para você, in loco.  Em termos de moralidade, é preciso admitir que isso é uma faca de dois gumes. Pelo menos comer lagostas não torna ninguém cúmplice do sistema corporativo de fazendas de confinamento que produz a maior parte da carne de boi, porco e frango. Por causa, no mínimo, do modo como são comercializadas e embaladas, comemos essas carnes sem ter de pensar que um dia já foram criaturas sencientes e dotadas de consciência às quais foram feitas coisas horríveis.

Conforme mencionado, a Maior Panela para Lagostas do Mundo, que é destacada como uma atração no programa do festival, fica bem à vista de todos na área norte do FLM. Tente imaginar um Festival da Carne do Nebraska cujas festividades incluíssem caminhões estacionando e gado sendo descarregado por uma rampa para em seguida ser abatido diante do público no Maior Matadouro do Mundo ou coisa parecida – seria impossível.

 intimidade da coisa toda é maximizada em casa, onde naturalmente a maioria das lagostas é preparada e comida (percebam, contudo, o eufemismo semiconsciente “preparada”, que no caso das lagostas significa na verdade matá-las bem no meio das nossas cozinhas). No cenário habitual, o sujeito chega em casa com as lagostas e toma pequenas providências como encher o tacho de água e pôr para ferver, em seguida retira as lagostas da sacola ou qualquer que seja o recipiente em que tenham sido trazidas… e então coisas desconfortáveis começam a acontecer. Por mais estuporada que esteja depois do trajeto, por exemplo, a lagosta costuma voltar à vida de forma alarmante ao ser colocada na água fervente. Quando é despejada do recipiente para dentro do tacho fumegante, às vezes a lagosta tenta se segurar nas bordas do recipiente ou até mesmo enganchar as garras na beira do tacho como uma pessoa dependurada de um telhado, tentando não cair. Pior ainda é quando a lagosta fica imersa por completo. Mesmo que o sujeito tampe o tacho e saia de perto, normalmente é possível ouvir a tampa chacoalhando e rangendo enquanto a lagosta tenta empurrá-la. Ou escutar as garras da criatura raspando o interior do tacho enquanto se debate. Em outras palavras, a lagosta apresenta um comportamento muito parecido com o que eu ou você apresentaríamos se fôssemos atirados em água fervente (com a óbvia exceção dos gritos). Para falar de modo ainda mais direto, a lagosta age como se sentisse dores terríveis, fazendo com que algumas pessoas abandonem a cozinha levando consigo um daqueles cronômetros de plástico para esperar em outro cômodo até o processo inteiro chegar ao fim.

Há um mito populista relevante acerca do apito agudo que por vezes escapa de uma panela onde se fervem lagostas. O som é causado pelo vapor expelido pela camada de água marinha entre a carne da lagosta e sua carapaça (é por isso que as lagostas de casca mole apitam mais que as de casca dura), mas a versão pop afirma que esse som, semelhante aos guinchos de um coelho, é o grito de morte da lagosta. As lagostas se comunicam através de feromônios na urina e não possuem nada remotamente parecido com o equipamento vocal necessário para gritar, mas o mito é bastante persistente – o que pode, mais uma vez, apontar para um desconforto baixo cultural a respeito dessa história de ferver lagostas.

 maioria dos eticistas concorda que existem dois critérios principais para determinar se uma criatura viva possui a capacidade de sofrer e, assim, possui interesses genuínos que podemos ou não ter o dever moral de levar em conta.[2] Um deles se relaciona ao hardwareneurológico requerido para a experiência da dor com que o animal vem equipado – nociceptores, prostaglandinas, neurorreceptores de opioides etc. O outro critério é se o animal demonstra algum comportamento associado à dor. E é necessária uma boa dose de ginástica intelectual e detalhismo behaviorista para não ver as ações de lutar, se debater e fazer tilintar tampas de panela como comportamentos associados à dor. Segundo os zoólogos marinhos, em geral uma lagosta leva de 35 a 45 segundos para morrer dentro da água fervente. (Não consegui encontrar nenhuma fonte que mencione o tempo necessário pa-ra que morram em vapor superaquecido; espera-se que seja mais rápido.)

Existem, é claro, outras maneiras de matar sua lagosta in loco e assim obter o máximo de frescor. Alguns cozinheiros têm como hábito espetar a ponta de uma faca afiada e pesada em um ponto logo acima da metade da distância entre os olhos pedunculares da lagosta (mais ou menos onde o Terceiro Olho se localiza nas frontes humanas). A alegação é que isso ou mata a lagosta instantaneamente ou a torna insensível, e dizem que elimina ao menos parte da covardia envolvida no ato de jogar uma criatura em água fervente e em seguida abandonar o recinto.

Até onde pude deduzir conversando com defensores do método da facada na cabeça, o raciocínio é que ele é mais violento, todavia no fim das contas é mais misericordioso, além de que a disposição de exercer agência pessoal e aceitar a responsabilidade de apunhalar a cabeça da lagosta de algum modo honra o animal e autoriza alguém a comê-lo (os argumentos pró-facada muitas vezes têm um sabor vago de “espiritualidade da caça” do nativo americano). Mas o problema do método da facada é biologia básica: os sistemas nervosos das lagostas não operam a partir de um, mas de diversos gânglios conhecidos como feixes de nervos, meio que conectados em série e distribuídos por toda a parte de baixo do corpo do animal, da proa à popa. E incapacitar somente o gânglio frontal não costuma resultar em morte rápida ou perda de consciência.

Outra alternativa é colocar a lagosta em água salgada fria e em seguida ferver lentamente. Cozinheiros que defendem este método recorrem à analogia da rã, que supostamente pode ser impedida de saltar de uma panela fervente se a água for esquentada aos poucos. Para poupar a todos de um resumo das minhas pesquisas, vou simplesmente garantir que a analogia entre rãs e lagostas não se sustenta – e digo mais, se a água na panela não for água marinha e aerada, a lagosta nela imersa é submetida a uma lenta sufocação, embora esta não seja severa o suficiente para impedir que ela se debata e faça barulho quando a água ficar quente o bastante para matá-la. Na realidade, lagostas fervidas aos poucos muitas vezes demonstram todo um conjunto adicional de reações pavorosas e convulsivas que normalmente não são registradas na fervura comum.

Em última análise, as únicas virtudes confirmadas dos métodos de lobotomia caseira e fervura lenta são comparativas, pois há quem prepare lagostas de formas ainda piores, mais cruéis. Cozinheiros interessados em poupar tempo às vezes colocam as lagostas vivas no micro-ondas (geralmente após fazer várias perfurações na carapaça, uma precaução cuja utilidade muitos adeptos do micro-ondas aprendem na prática). Esquartejar a lagosta viva, por outro lado, faz sucesso na Europa – alguns chefsdividem a lagosta ao meio antes de cozinhar; outros gostam de arrancar as patas e a cauda e atirar somente essas partes dentro da panela.

 há outras más notícias relacionadas ao critério de sofrimento número 1. Ainda que não se destaquem pela visão ou pela audição, as lagostas possuem um tato muito refinado, auxiliado por centenas de milhares de pelos minúsculos que se projetam através da carapaça. “E é por isso”, nas palavras de T. M. Prud-den no clássico do ramo, About Lobsters, “que embora envolta pelo que parece uma armadura sólida e impenetrável, a lagosta é capaz de receber estímulos e sensações do mundo exterior tão prontamente quanto se possuísse uma pele macia e delicada.” E as lagostas possuem nociceptores,[3] bem como versões invertebradas de prostaglandinas e neurotransmissores importantes através dos quais nossos próprios cérebros registram a dor.

Por outro lado, as lagostas não parecem contar com o equipamento necessário para produzir ou absorver opioides naturais como as endorfinas ou as encefalinas, utilizados pelos sistemas nervosos mais avançados para tentar lidar com a dor intensa. A partir desse fato, porém, pode-se concluir que as lagostas talvez sejam ainda mais vulneráveis à dor, pois não contam com a analgesia embutida nos sistemas nervosos dos mamíferos. Ou, em vez disso, concluir que a ausência de opioides naturais implica a ausência das sensações de dor realmente intensas que essas substâncias são destinadas a aliviar. Eu particularmente detecto uma melhora sensível no meu humor ao contemplar esta última possibilidade. É possível que a ausência de hardwarepara endorfinas/encefalinas signifique que para as lagostas a experiência crua e subjetiva da dor seja tão radicalmente diferente da experiência dos mamíferos que pode nem mesmo ser merecedora do termo “dor”. Talvez as lagostas tenham mais em comum com aqueles pacientes de lobotomia frontal sobre quem a gente às vezes lê, que relatam experimentar a dor de uma maneira totalmente diferente de você e eu. É evidente que esses pacientes sentem dor física, neurologicamente falando, mas não desgostam dela – embora também não cheguem a gostar; é como se eles sentissem dor, mas não sentissem nada a respeitodela – ou seja, a dor não lhes aflige nem é algo que desejem evitar.

Talvez as lagostas, que também não possuem lobos frontais, sejam da mesma forma indiferentes ao registro neurológico de ferimento ou perigo que chamamos de dor. Existe, afinal de contas, uma diferença entre: (1) a dor como um evento puramente neurológico e (2) o sofrimento genuíno, onde parece crucial o envolvimento de um componente emocional, uma consciência da dor como uma experiência desagradável, algo a se temer/desgostar/querer evitar.

Ainda assim, após toda a abstração intelectual, restam os fatos da tampa batendo freneticamente, das patas enganchadas de forma patética na beira da panela. Diante do fogão é difícil negar de qualquer modo que aquilo seja uma criatura viva sentindo dor e tentando evitar/escapar dessa experiência dolorosa. Para minha mente leiga, o comportamento da lagosta no tacho parece ser uma expressão de preferência; e é bem possível que uma habilidade para formar preferências seja o critério decisivo para o sofrimento real. Em linhas gerais “preferência” talvez seja um sinônimo de “interesses”, mas é um termo melhor para nossos fins por ser menos abstratamente filosófico – “preferência” parece mais pessoal, e o que está em questão é justamente toda a ideia da experiência pessoal de uma criatura viva.

A lógica desta relação (preferência → sofrimento) pode ser mais facilmente compreensível no caso negativo. Se cortarmos ao meio certos tipos de vermes, muitas vezes as metades seguirão rastejando por aí e cuidando dos seus assuntos vermiformes como se nada tivesse acontecido. Quando, tomando como base seu comportamento pós-operatório, afirmamos que esses vermes não parecem estar sofrendo, estamos na verdade dizendo que não existe indício algum de que os vermes saibam que algo de ruim aconteceu ou que prefeririam não ser divididos ao meio.

As lagostas, porém, manifestam preferências. Experimentos demonstraram que elas são capazes de detectar mudanças de apenas 1 ou 2 graus na temperatura da água; um dos motivos para seus complexos ciclos migratórios (que muitas vezes abarcam mais de 180 quilômetros por ano) é a busca por temperaturas que consideram mais agradáveis. E, como já foi mencionado, as lagostas vivem no leito marinho e não gostam de claridade – se um aquário cheio de lagostas for colocado à luz do sol ou mesmo sob a luz fluorescente de uma loja, elas vão sempre se aglomerar na parte mais escura. Por serem bastante solitárias no oceano, as lagostas também claramente desgostam do amontoamento que é parte indissociável do seu cativeiro em aquários, pois (como também já foi mencionado) um dos motivos pelos quais se amarram as garras das lagostas assim que elas são capturadas é evitar que elas ataquem umas às outras por causa do estresse do armazenamento em espaços exíguos.

e qualquer modo, no FML, diante dos aquários borbulhantes em frente à Maior Panela para Lagostas do Mundo, observando as lagostas recém-pescadas se amontoando umas sobre as outras, sacudindo impotentes as garras amarradas, se escondendo nos cantos mais escuros ou se afastando inquietas do vidro quando alguém se aproxima, é difícil não sentir que estão infelizes, ou assustadas, mesmo que seja alguma forma rudimentar dessas emoções… e, a propósito, por que a rudimentariedade tem que ser incluída na questão? Por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento seria menos urgente ou desconfortável para a pessoa que está colaborando com ela ao pagar pelo alimento resultante desse sofrimento? Não estou tentando passar um sermão ao estilo do Peta – ou pelo menos acho que não. Em vezdisso, estou tentando compreender e articular alguns dos questionamentos perturbadores que vêm à tona em meio às risadas, à animação e ao orgulho comunitário do Festival da Lagosta do Maine. A verdade é que, se comparecendo ao festival o sujeito se permitir cogitar que as lagostas podem sofrer e que prefeririam que isso não acontecesse, o flm começa a ficar parecido com um circo romano ou um festival de torturas medievais.

Parece uma comparação exagerada? Se for o caso, exatamente por quê? Ou que tal esta: é possível que as gerações futuras considerem as práticas de agronegócio e alimentares contemporâneas da mesma maneira como hoje enxergamos os espetáculos de Nero ou os experimentos de Mengele? Minha própria reação inicial é achar tais comparações histéricas e extremadas – todavia, o motivo pelo qual me parecem extremadas é que eu creio que os animais são moralmente menos importantes que os seres humanos;[4] e quando se trata de defender essa crença, ainda que para mim mesmo, preciso reconhecer que: (a) tenho um óbvio interesse egoísta nessa crença, pois gosto de comer certos tipos de animais e quero ser capaz de continuar fazendo isso, e (b) não consegui elaborar nenhum tipo de sistema ético pessoal dentro do qual essa crença se torne verdadeiramente justificável em vez de ser apenas uma conveniência egoísta.

evando em conta o lugar onde este artigo será publicado e minha própria falta de sofisticação culinária, tenho curiosidade de saber se o leitor se identifica com quaisquer dessas reações, confissões e desconfortos. Também não quero soar excessivo ou moralista, quando na verdade o que sinto é confusão. Perguntas aos leitores de que apreciam refeições bem-feitas e bem-apresentadas envolvendo carne de vaca, vitela, cordeiro, porco, frango, lagosta etc.: Vocês pensam muito sobre a (possível) condição moral e o (provável) sofrimento dos animais envolvidos? Se pensam, quais convicções éticas desenvolveram para se permitir não apenas comer, mas também saborear e desfrutar de iguarias à base de carnes de animais (pois o desfruterefinado, em contraste com a mera ingestão, é naturalmente a razão de ser da gastronomia)? Se, por outro lado, vocês não dão a menor bola para confusões ou convicções e acham coisas como o parágrafo anterior puro umbiguismo sem sentido, o que em seu íntimo faz vocês sentirem que não existe realmente problema algum em desconsiderar de forma peremptória toda essa questão? Isto é, a recusa em pensar nessas coisas seria o produto de um raciocínio ou na verdade vocês apenas não querem pensar sobre o assunto? E se for isso mesmo, por que não? Vocês chegam a pensar, mesmo à toa, sobre as possíveis razões dessa relutância em pensar no assunto? Não estou tentando importunar ninguém – minha curiosidade é genuína. Afinal de contas, ser muito consciente, atencioso e cuidadoso a respeito do que se come e de todo o contexto englobante não é parte do que distingue um verdadeiro gourmet? Ou toda a atenção e a sensibilidade extraordinárias do gourmetdevem se limitar ao sensorial? Tudo poderia realmente ser resumido a uma questão de sabor e apresentação?

Estas últimas indagações, todavia, ainda que sinceras, obviamente envolvem questões muito maiores e mais abstratas a respeito das conexões (caso existentes) entre estética e moralidade – sobre o que realmente significa o adjetivo em uma expressão como “A Revista da Boa Vida” –, e essas questões levam diretamente a águas tão profundas e traiçoeiras que talvez seja melhor encerrar por aqui a discussão pública. Existem limites mesmo para o que as pessoas interessadas podem perguntar umas às outras. J


[1]No fim das contas se descobriu que um tal sr. William R. Rivas-Rivas, membro de alto escalão do quartel-general do Peta na Virginia, estava no festival este ano, ainda que sozinho, cuidando das entradas principal e lateral no sábado, dia 2 de agosto, distribuindo panfletos e adesivos com a inscrição “Ser Fervido Dói”.

[2]“Interesses” significa basicamente preferências fortes e legítimas, que obviamente exigem algum grau de consciência, reatividade a estímulos etc. Veja, por exemplo, o que diz o filósofo utilitarista Peter Singer, cujo livro Libertação Animal, de 1975, é a bíblia do movimento contemporâneo de direitos dos animais:Seria tolice dizer que não está nos interesses de uma pedra ser chutada por um garoto ao longo de uma estrada. Uma pedra não tem interesses, pois não pode sofrer. Nada que possamos fazer com ela representaria qualquer diferença em seu bem-estar. Um rato, por outro lado, tem interesse em não ser chutado ao longo da estrada, pois sofrerá se isso vier a acontecer.

[3]Este é o termo neurológico para receptores sensoriais específicos, “sensíveis a extremos de temperatura potencialmente nocivos, a forças mecânicas e a substâncias químicas liberadas quando os tecidos do corpo sofrem danos”.

[4]Significando bem menos importantes, ao que parece, posto que a comparação moral em jogo não é o valor de uma vida humana versus o valor de uma vida animal, mas sim o valor de uma vida animal versus o valor do gosto humano por um tipo específico de proteína. Até mesmo o “carnófilo” mais teimoso reconheceria que é possível viver e comer bem sem consumir animais.

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